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A veste negra

 Uma alteração nas células epiteliais, transmitida pelo contato humano em suas mais variadas formas, com incubação de 3 anos e que agia diretamente nos melanócitos tornando a pele de todo e qualquer ser: negra!

Creio que se faz necessária a explicação deste primeiro parágrafo, ainda mais se você leitor, não for alguém cotidianamente ligado à área da saúde ou mesmo não puder rememorar seus tempos de vestibulando. A história iniciada em Brasília tomou conta de todo o Brasil e rumou posteriormente ao mundo. A questão é a seguinte: nasceu em um hospital particular de Brasília, uma criança branca, de pais brancos, avós brancos, quarto e cachorro brancos e dentro de exatas duas semanas ela se tornou preta! O caso na época mobilizou a comunidade científica, ouriçou as autoridades religiosas e surpreendeu muita gente, os programas televisivos e sensacionalistas aproveitavam o enredo para transformar a questão da pele em mais uma piada, diziam eles: “meus amigos, a coisa ficou preta!” Estudiosos e especialistas chegaram numa conclusão e disseram que a criança havia nascido com uma alteração rara nas células que compõe uma das camadas de nossa pele, no caso a derme e, a alteração se dava nas células epiteliais que produzem melanina, os chamados melanócitos. A melanina define o que costumeiramente chamamos de branco, preto, amarelo, azul, pardo, rosadinho e tantas outras cores existentes no Brasil. A criança, muito bela, saudável e dona de uma vistosa pele negra foi motivo de problema para os pais, moradores de uma diferenciada área no canto noroeste da cidade. As constantes perguntas sobre o porquê de adotar aquele negrinho eram cotidianas na vida do casal que cansado de explicar sobre a paternidade legítima do filho, decidiram que este seria apresentado como uma criança adotada e que, quando crescesse, diriam tudo o que se passou a ele, ou seja, seria esse um raro caso de um filho biológico adotado pelos seus próprios pais.

Esse curioso caso teve seu tempo de manchetes, mas nada muito além de uma semana, pois na menor eclosão de noticias sobre celebridades, o caso da criança foi esquecido

e mais do que isso, engolido por campeonatos, jornais, novelas, obituário da tarde em forma de programas de TV e outros mais. Foram três anos de dormência até que, de repente, as pessoas chegavam aos montes, dia após dia nos centros clínicos, acusando uma repentina pigmentação na pele e em todos os casos, duas semanas foi o suficiente para tornar a pele branca em negra. Já não se podia esconder a agitação que pairou sobre Brasília e as notícias foram chegando com casos semelhantes em muitas localidades mundiais: Miami, New York, Bariloche, Porto alegre, Rio, Pernambuco, São Paulo, a lista não se findava… O processo era este: o escurecimento da pele se dava de forma gradual e em duas semanas os brancos, amarelos, pardos e quem mais possuísse pele, negro se tornava. Nesta mesma época os cubanos haviam desenvolvido tecnologia para a cura do vitiligo (doença causadora de manchas esbranquiçadas na pele) e, segundo pesquisas internacionais oriundas do norte, constatou-se que o escurecimento da pele era proveniente dos efeitos colaterais da descoberta medicamentosa criada em Cuba. Até que se confirmasse o fato, para a segurança mundial, Cuba necessitou ser isolada novamente. A culpa não pôde ser mantida pelos lados caribenhos, pois logo rememoraram e posteriormente investigaram os constantes casos que aturdiam os brasilienses. A progressão geométrica com que Brasília enegrecia fez com que a criança do começo de nosso relato reaparecesse nas manchetes. Comprovado! Todos os parentes, inclusive os pais, tinham enegrecido. Um condomínio da Barra no Rio de Janeiro, local em que mantinham um segundo apartamento, estava negro por completo. Como pertenciam à alta classe, as viagens, sejam a trabalho, lazer ou descanso eram frequentes e o contato social do casal pelo mundo era intenso. A conclusão foi mesmo esta, a criança nascida em Brasília fora a primeira a manifestar a alteração epitelial, o tempo de incubação era de 3 anos, com manifestação em duas semanas, eis o veredito final!

Os efeitos no Brasil foram os mais diversos possíveis, primeiro uma grande negação e uma ação emergencial pedia a saída do casal do condomínio em Brasília, assim como os proibiram de exercer contato com outras pessoas, uma espécie de quarentena que se expandia até mesmo ao parentesco mais distante do casal. A raiva da população não parou por aí, o avanço dos casos já era incontrolável e radicais o chamavam de a “segunda peste negra”, porém pessoas um pouco mais racionais diziam que nem sequer havia existido uma primeira. De fato, o clima mudou e as relações acompanharam esta mudança, as clínicas psicológicas tiveram movimentação atípica, a venda de pó de arroz quadruplicou e a cobrança por respostas tornaram a dividir a sociedade brasileira, isolando ainda mais os brancos que restavam, brancos estes receosos em saber se manifestariam a pigmentação negra em algum momento devido ao longo tempo da incubação. Toda essa tempestade de sentimentos teve sua diminuição quando os cientistas vieram a público dizer que a questão era irreversível e seríamos dentro em breve, ao menos no Brasil, uma população quase que exclusivamente negra. Ainda, segundo os cientistas, isso era bom devido ao alto grau de radiação solar de nossos dias e, já que a peneirada atmosfera agonizava, o acontecido vinha a calhar sendo na verdade uma sorte fortuita para a humanidade. Sem engolir o argumento da evolução da espécie, tal como no Darwinismo, a sociedade brasileira tratou logo de definir critérios claros de diferenciação, tudo preto no branco. Fenótipos, aparentes e peculiares aos negros, foi uma saída aos inconformados. Eles dividiram os negros em Tnegros e Negros, pois mesmo diante da irreversibilidade da situação acreditavam que seriam T(temporariamente negros) e, portanto, careciam da diferenciação. Como sempre foi mais uma bobagem, visto que a equanimização das cores saltou aos olhos a semelhança dos seres. Tentaram outras formas mais arcaicas como estrelas brancas no paletó, bairro de ex-brancos e roupas de uso exclusivo.

Eis que a situação chegou ao seguinte nível: quando entrávamos num shopping, simplesmente a referência se perdeu. A atendente, antes loira era negra. A faxineira da loja continuava negra, assim como a que limpava os banheiros e a que servia as mesas. A nova sociedade estava confusa e sem referências, pois você, ao entrar em uma boutique de luxo iria notar que a cor da atendente era semelhante a da faxineira, que por sua vez era igual a da proprietária e se perfilássemos as três não se sabia a quem recorrer. A população carcerária tinha a mesma cor do delegado, que tinha a mesma cor do juiz, que tinha a mesma cor do advogado. As pessoas diziam que não era uma lenda, existiam sim dentistas negros e confesso que a raridade disso se comparava à visão de duendes andando pelas ruas. O avião era pilotado e co-pilotado por pessoas de pele negra, seguidas por uma primeira classe digna de foto em sua negritude. Os outdoors pelos cantos da cidade passaram a exibir mulheres exuberantes em sua negritude e o mundo dos cosméticos ganhou nova cor assim como o universo da moda ganhou nova tez. Estranhas manchetes de jornal surgiam sem parar e desta vez destacou-se em rede nacional, que um sujeito, pela força do hábito, entregou moedas no estacionamento a um homem negro, que na verdade era um ex-branco e atual presidente da bancada ruralista do Rio Grande do Sul na Câmara. 

Inconformado com tal atitude, o sujeito veio a público defender a imediata proteção do Estado contra casos de racismo. Pessoas escandalizavam-se ao serem seguidas dentro dos estabelecimentos, os olhares de acusação prévia as atormentavam. As novelas brasileiras tiveram que, a contragosto, entregar papéis principais às pessoas de cor e, desta forma, a madame rica que causaria intriga com a outra madame por conta da disputa de um homem fútil, eram todos negros.

Os negros de nascença sentiram, a partir da nova configuração social, as oportunidades aumentarem explosivamente diante de uma sociedade quase negra em sua totalidade. Os ônibus lotados a descer às favelas brasileiras carregavam pessoas da mesmíssima cor das pessoas dos carros climatizados no asfalto. Escolas particulares conceituadas liberavam os pequenos negrinhos, igualzinho à escola pública caindo aos pedaços, do outro lado da rua. Os índices de homicídio que antes eram seis vezes maiores na população negra perderam seu sentido racial.

 

Grupos religiosos criaram explicações aos montes para o enegrecimento populacional e se digladiavam cada qual com sua teoria.

Os céticos radicais, por sua vez, diziam que se Deus havia criado o homem em sua imagem e semelhança, o homem fez o mesmo para com Deus, daí porque a criação de um sujeito com longos cabelos italianos, pele grega levemente amarelada pelo sol, olhos azuis germânicos e semblante com traços afinados, em outras palavras “um bom europeu”. Era chegada a hora de mudar, dar novas cores às figuras religiosas. E na mesma onda dos céticos, assim foi Hollywood, estreando uma nova paixão de cristo com Jesus escurecido e outros envolvidos na história bíblica a acompanhar a nova cor vigente.

Quem imaginaria o que uma só criança é capaz de fazer no mundo? O relato exposto centrou-se no Brasil e atingiu um nível mundial até o mundo descobrir que, após 30 anos, os melanócitos recuavam a produção e a pele voltava a sua linda e maravilhosa diversidade, cada qual retornando a sua cor.

Gostaria de poder relatar a vocês o que se passou nos EUA, na Inglaterra, na França, mas foram tantos acontecimentos no Brasil que seria difícil dar conta dos relatos do mundo. Resta dizer que os milhões de mortos globais foram vistos com mais atenção independente da nacionalidade e até lagrimas nos eram arrancadas diante do noticiário da TV, quando pessoas morriam em guerras no Zimbábue, Congo e Zaire. Foram tempos esclarecedores. O Haiti foi visto como um país do ocidente, descobriu-se que a África era um continente com 54 países e a história africana finalmente foi estudada no Brasil, não por força de lei, mas porque agora os professores a sabiam e ao repassá-la minimamente, concluíram o óbvio tanto tempo escondido: sim, existe racismo no Brasil!

Carlos SJ

Escritor, Psicólogo, Músico

www.levedeler.com.br

levedeler@gmail.com

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