Talvez o papel mais interessante da memória
Seja nos transmitir a impressão que a vida exista
Quando na verdade, ela apenas se manifesta
Essa cômica sensação de guardar o tempo, os sabores, os amores e os dissabores
É a pura vaidade da memória.
Senhora caduca, casada com o passado, amante do futuro
Tem por sonho: ser real.
E a vida segue a cair de amores por quem se manifesta…
Não apenas nas memórias, mas na ação
Pois sendo ela
Pura manifestação
Não tem do que esquecer, nem lembrar. Segue se manifestando
Criando e apagando.
E os seres vão se angustiando
Com tanta vida a se manifestar
Julgam prudente então: captar, reter, fotografar
…De memórias se preencher
E se dentro das memórias quase nenhuma vida restou
É por que memórias são resquícios de uma vida
Que já se manifestou.
Recordar não é viver
Memória ou vida, os dois juntos jamais.
Enquanto a vida acontece
A memória vai juntando os seus pedaços pelo chão
Remendando as emoções
Que a vida como um confete festivo
Espalha…
Como há alegria!
Guardada e parada
Esperando ser libertada
Pedindo para quem tem vida
Manifestar!
É tanto amor que tenho que começo a desmanchar…
Assim como uma massa de modelar na mão de uma criança.
Esse amor, de tão forte, anseia por sair do corpo correndo,
como um atleta apressado, mas não corre, fica!
E fica aqui, contido, balançando para frente e para trás…
É justamente isso que faz mover o coração que nada mais é
do que o amor batendo, querendo sair do corpo e não podendo.
Bate na porta do corpo e este, trancado, se fecha.
Mas é tanto amor querendo sair que ele então encontra uma brecha,
duas janelas nesse mundo tão fechado.
E o amor vai saindo em forma lacrimal descendo até chegar na boca
e ao entrar nela provoca o gosto salgado.
Isso aguça ainda mais a certeza… Sim, eu devo ter vindo do mar, salgado, forte e leve.
Vai e fica ele também… e às vezes somos um só num só movimento…
Feitos de águas e ventos a se misturar.
Ao longe o vejo bater no peito do mundo e logo penso:
O mar também deve amar e, por tanto amor que tem,
difícil seria manter-se em paz e, indo e vindo acaba se tornando forte demais.
Inunda vilas inteiras, casas costeiras e depois
paira calminho… como se nada ali viesse a passar e
se oferece quieto para a criança fincar seu baldinho na areia e
molhar somente a ponta dos pés.
É tanto amor que tenho que… falta o ar, sobra o mar e me faz a-mar.
E quantas vezes, chegando ao fundo do poço,
Cavaste um bucado mais?
Remontando seus cacos de dignidade
já com braços cheios da mísera honra que te sobrou?
E mesmo assim, cavando tão fundo, recorrias tu ao mesmo poço uma vez mais,
tal como um visitante incessante do seu próprio ritual.
Tentas respirar o ar puro, mas já é a narina que lhe falta ao olfato das coisas sutis.
Tentas ser feliz, mas a sonora palavra tão repetidamente dita não passa de um jargão.
Acendes as luzes do porão em que se encontra sua mente e lá estás tu, cansado, dormente,
entregue ao senhor vão, que nomeaste assim mesmo sabendo que em verdade
o que te acompanha é pura solidão.
Olhas para o céu e tens medo ainda que o dia surja cedo,
e que noite demore a se anunciar.
Rezas aos Deuses pedindo ao mundo que pare e gire ao contrário,
quem sabe assim sua vida mude o itinerário.
E da amargura de coisas tão espessas
paire um paz singela e derradeira a atravessar seu corpo,
qual luz a penetrar no barro cinzento cintilando o que havia de mais opulento.
Pensas num colo, numa mão a te guiar.
Pensas em ser mãe para gerar a quem amar de tabela,
logo és barrado pela biologia que te fez homem, te fez varão, terás tu que lidar
com a dor do coração sem jorrares por fora, sem demonstrares um só lamento.
Serás tu seco por dentro e, ainda assim, terás que te levantar.
Com as pernas que tens, porás em movimento uma após outra, como
numa sinfonia de gente louca, pondo-te a correr como um animal cheio de medo.
Pensas com sabedoria, que nem mesmo o pior dos dias é capaz de parar
aquele que se pôs em movimento.
Ouves portanto, o velho poço a te chamar, carregando resquícios de tua alma
lamacenta que vai se esvaindo enquanto corres.
Teus passos são tão rápidos, teu mover tão tenaz que de repente
tornas a sentir os cheiros do mundo.
Teus cabelos, agora esvoaçantes, brincam com a relva em igual movimento.
Começas a sentir que por dentro teu peito cintila e o sangue, ávido
por circular as veias, acelera sua pulsação e aquele oco antes tão vazio
ouve rufar um coração.
Entendeste por final, o mistério das coisas paradas a viver estagnadas,
cada qual com sua própria nominação.
Uns a chamam medo, outros solidão.
Eras tu somente uma alma dolorida que foi chamada à corrida e decidiu por ficar.
Sabendo agora das rodas do mundo,
vibras nas ondas mais belas e te demoras somente em amar!
A fome arrasta uma carroça e passa vagarosa pela avenida movimentada
Seja paulista, sulista, carioca ou candanga.
Calçada em trapos, metade pé, metade sujeira.
Seu corpo é repuxado, esquelético.
As hastes metálicas chegam a se confundir com as mãos que carregam
latas de coca-cola vazias, bebidas por quem não tem fome.
A fome tem poderes mágicos,
quando bate nos corpos os tornam invisíveis.
Insensíveis são os olhos de quem não tem fome
Ao lado das lojas abertas, pessoas vazias de barriga cheia.
Comentando o jornal local
Lamentando a violência banal
Enquanto comem…
A fome junta moedas pra comprar um pão,
mas pelo pouco que juntou recebe um: não!
E o frio traz fome.
Mas pra quem já tem fome
o frio traz medo.
Agora o pão já não é o bastante e
o corpo quer ir além da nutrição
Saciar a solidão
Disfarçar a saudade
Fantasiar que faz parte da sociedade
Deixar de ser invisível
Permitir que qualquer coisa entre na veia
Fumaceie os pulmões.
Depois de satisfeita
a fome esquece a si própria.
Agora não está desacompanhada
É facilmente notada
Mobiliza o aparato policial
Dá pauta para a matéria do jornal.
Agora é ela quem alimenta o medo.
Na mesma avenida lotada
A fome tão cheia de si
Quer dividir o que tem
Quer ser notada
É violenta
É violentada
E acaba por ser culpabilizada
pela própria fome que tem.
Eu sei
Você fez birra por quase todos os cantos
Quebrou sua paz
Rangeu dentes alheios enquanto apertava os seus
Escondeu os gestos
Fez protesto contra tudo que vinculasse ela a você
Não aceitava ser chamada de flor
Coisa esta, infantil, banal
Por um tempo foi eficaz
Enquanto tudo era caule e promessa de botão
Ainda assim ela forçava
Ensinando o que você queria desaprender
Sei bem…
Você queria ter apenas um
Eu
Inteiramente seu
E por isso gritou tanto
Até que conseguiu
Deixou seu jardim
Partiu
De repente, era a mais bela entre as mulheres
Sem em nada parecer com o jardim que te gerou
Isso era o que pensava, você
Agora dona do seu eu
Esbelta, elegante
Triunfante nas agendas sociais
Radiante?
Sim, cada vez mais
Tão cheia de pétalas
Tão cheia
E tão cheia
Que murchou…
Não sustentou o próprio peso
A alma carregada
O perfume inebriante a sufocou
A beleza desejada mandou cobrança
Desfez contigo as alianças
Você então
Rogou
Pediu aos céus
Os perfumes dos outros tempos
Em vão
O caule deixou sua face envergada
Nada mais era tão urgente
O vento se pronunciou
As pétalas se foram junto com ele
Aquela que fugiu de seu jardim
Voltou
Lá se deparou com suas raízes
Entrelaçadas
Lá também estava ela
Sob calma chuva fina
Tímida, acanhada
Esperando paciente
A flor desgarrada
Recebeu você com um sorriso
Que te fez resplandecer
Se entender por dentro
Você abriu novamente um botão
Agora mais ameno
Mais discreto
Foi preciso multiplicar-se
Tamanha alegria que não se cabia numa só
E por você nasceram milhares
Estava ela a te esperar:
Sua infância descartada
Sua mais bela raiz
Seu mais lindo botão
Não era preciso mais lutar
Nem dela se avergonhar
Tudo o que fora bobo e infantil
A flor agora precisava
A flor madura
Experiente
Se fez contente
Quando foi chamada de flor
Novamente
Imagino que ao crescer vamos enfim aprender
Agora que somos mais velhos
Esticados
E somente isso
Falta algo a mais para crescer
Tão grande somos e ainda balbuciamos que injustiças são puro:
Mi mi mi
Crescer para ouvir os ecos dos gritos
Por detrás das selfs coloridas que tiramos
Quando estamos no Pelourinho.
Lá se tinha consciência humana
Seletiva e esbranquiçada
Talvez quando crescermos como nação
Não veremos as vidas como borrões de tinta apagada
E tampouco acreditaremos que histórias clamam por ser vitimizadas
Há 70 anos atrás pessoas se reuniam em centros populares da Europa
Indo para Paris, Londres, Bruxelas
Tal como fazemos agora para desestressar e ter uma bela experiência emocional
Naquela época colocavam negros em praça pública
Dentro de um cercadinho para exibir uma experiência animal
Se perguntados, diriam por certo que tinham: Consciência humana e não racial
Se isso lhe soar racismo ao contrário ou falta de consciência tal
Digo apenas que é um relato
Você terá a opção de pesquisar no Google
Mas não aconselho a você
Aconselho algo a mais
Passe a vista nos jornais
Ou fora da sua confortável residência mental
Comece hoje mesmo
Ao estacionar
Passe o olho na cor do Flanelinha
E imediatamente olhe para a cor do condutor
Do carrão ao lado
Ao ir para seu encontro com as amigas e amigos
No agradável local de sua escolha
Olhe mais uma vez:
A cor do atendente
A cor do freguês
A cor do limpo chão branco
Areado em sua maioria pela mão negra
Não quero estragar seu dia
Mas tenha a ousadia de verificar os números
Caso você seja racional e ame as estatísticas
Passe o olho de forma sutil
E vai ver que de 100 pessoas assassinadas
73 são negras neste Brasil
Seriam muitas estatísticas para explanar
Mas meu intuito é que você vá pesquisar
E não pare de olhar.
Se for curioso vai descobrir:
A cor da prisão
A cor do Judiciário
A cor da periferia
Entendo se tudo isso lhe der dor de cabeça…
Você poderá dispor de um médico para lhe atender
Mas não poderá esticar muito a conversa sobre suas novas percepções raciais
Pois ele certamente será branco e falará que isso não é nada demais
Se você tem mesmo essa empatia te digo que pode se juntar
Pois tudo diz respeito ao Branco ao Amarelo, ao Negro.
Não se esqueça que se seu aniversário for no dia do
Natal, finados, feriado nacional, ou dia da Paz Universal
Ainda assim você lutará por ele, pois ali está um pedaço da sua história
E você vai querer ser lembrado!
Entendo seu infantil desejo sobre essa tal consciência
Eu também o tenho.
Vejo que somos pura igualdade na biologia
Na capacidade, na humanidade e na falta dela
Só não na realidade social, na vitrine, na novela, na Universidade, no jornal…
Mas unidade é conquista e não pura palavra
O momento é de falar
De expor no verso, na rua, na cara nas leis
Há um negro no Brasil a despertar
Desejoso de se mostrar
De falar com orgulho do seu dia
De soltar os cabelos
As amarras
Levantar a cabeça e manter a coluna ereta
E isso é puro encanto
Nos deixem reverenciar todos os lindos dias
Mas especialmente este
Pois ali e quando se traz à tona a memória e a história
E se convida a consciência para ser:
Negra
O tempo levou as ilusões
Transformou minha cidade
Mudou minha idade
Descoloriu-me os cabelos
Mudou minha opinião
O tempo fez estrelas caírem
Apagou minha memória
Levou alguns parentes
Gerou novas crianças
Desgastou amores perfeitos
Fez a seca no rio
Trouxe novas estações
Novos amigos
Matou nossa vaidade
O tempo fez piada com as certezas
Mudou tudo aquilo
Que em outro tempo se acreditava
Corroeu nossos segredos
Aumentou nossos medos
Escapou entre os dedos
O tempo me cedeu uma fração
Um de seus vários pedaços
Que tentei esticar
Que tentei conservar
Que tentei guardar
Que tentei rememorar
Ainda assim o tempo veio cobrar
O pouco tempo que me deu
E como o tempo nunca foi meu
Tive eu que aceitar
Ficar sem tempo e sem lugar
No nosso último adeus
Esperava ficar triste
Mas foi no final do meu tempo
Que percebi
Que o tempo sequer existe.
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Era vapor
Que impulsionava a terra
que tremia as veias
Que rancava o couro
Era vapor
Corrida de touro
Eu e você
Nosso jeito sentimental
Vivendo a quentura do mundo Animal
Sentindo por dentro
A ebulição do momento
Os pés na serra
Queimando os caminhos
Derretendo as bocas
Era vapor enquanto
habitava o corpo
Se tornou chuva
Pra outra planta crescer
De onde viemos
O que viemos a ser
Veio desse caos ardente
Estanho adimitir para mentes inocentes
Que toda a vida teve inicio em uma bola incandecente
Um inferno particular
Um forno sem limites
Os eons do tempo
Viram o solo arder
Mergulhar
Envelhecer
Recentemente vieram os animais
Guardando traços ancestrais
De um calor
Que já não existe mais.
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