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POESIAS

Recordar não é viver

RECORDAR NÃO É VIVER

 

Talvez o papel mais interessante da memória

Seja nos transmitir a impressão que a vida exista

Quando na verdade, ela apenas se manifesta

Essa cômica sensação de guardar o tempo, os sabores, os amores e os dissabores

É a pura vaidade da memória.

Senhora caduca, casada com o passado, amante do futuro

Tem por sonho: ser real.

E a vida segue a cair de amores por quem se manifesta…

Não apenas nas memórias, mas na ação

Pois sendo ela

Pura manifestação

Não tem do que esquecer, nem lembrar. Segue se manifestando

Criando e apagando.

E os seres vão se angustiando

Com tanta vida a se manifestar

Julgam prudente então: captar, reter, fotografar

…De memórias se preencher

E se dentro das memórias quase nenhuma vida restou

É por que memórias são resquícios de uma vida

Que já se manifestou.

Recordar não é viver

Memória ou vida, os dois juntos jamais.

Enquanto a vida acontece

A memória vai juntando os seus pedaços pelo chão

Remendando as emoções

Que a vida como um confete festivo

Espalha…

Como há alegria!

Guardada e parada

Esperando ser libertada

Pedindo para quem tem vida 

Manifestar!

 

TANTO A-MAR

É tanto amor que tenho que começo a desmanchar…
Assim como uma massa de modelar na mão de uma criança.
Esse amor, de tão forte, anseia por sair do corpo correndo,
como um atleta apressado, mas não corre, fica!
E fica aqui, contido, balançando para frente e para trás…
É justamente isso que faz mover o coração que nada mais é
do que o amor batendo, querendo sair do corpo e não podendo.
Bate na porta do corpo e este, trancado, se fecha.
Mas é tanto amor querendo sair que ele então encontra uma brecha,
duas janelas nesse mundo tão fechado.
E o amor vai saindo em forma lacrimal descendo até chegar na boca
e ao entrar nela provoca o gosto salgado.
Isso aguça ainda mais a certeza… Sim, eu devo ter vindo do mar, salgado, forte e leve.
Vai e fica ele também… e às vezes somos um só num só movimento…
Feitos de águas e ventos a se misturar.
Ao longe o vejo bater no peito do mundo e logo penso:
O mar também deve amar e, por tanto amor que tem,
difícil seria manter-se em paz e, indo e vindo acaba se tornando forte demais.
Inunda vilas inteiras, casas costeiras e depois
paira calminho… como se nada ali viesse a passar e
se oferece quieto para a criança fincar seu baldinho na areia e

molhar somente a ponta dos pés.
É tanto amor que tenho que… falta o ar, sobra o mar e me faz a-mar.

 

A CORRIDA PARA A VIDA

E quantas vezes, chegando ao fundo do poço,

Cavaste um bucado mais?
Remontando seus cacos de dignidade

já com braços cheios da mísera honra que te sobrou?
E mesmo assim, cavando tão fundo, recorrias tu ao mesmo poço uma vez mais,

tal como um visitante incessante do seu próprio ritual.
Tentas respirar o ar puro, mas já é a narina que lhe falta ao olfato das coisas sutis.
Tentas ser feliz, mas a sonora palavra tão repetidamente dita não passa de um jargão.
Acendes as luzes do porão em que se encontra sua mente e lá estás tu, cansado, dormente, 
entregue ao senhor vão, que nomeaste assim mesmo sabendo que em verdade

o que te acompanha é pura solidão.
Olhas para o céu e tens medo ainda que o dia surja cedo,

e que noite demore a se anunciar.
Rezas aos Deuses pedindo ao mundo que pare e gire ao contrário,

quem sabe assim sua vida mude o itinerário.
E da amargura de coisas tão espessas

paire um paz singela e derradeira a atravessar seu corpo,

qual luz a penetrar no barro cinzento cintilando o que havia de mais opulento.
Pensas num colo, numa mão a te guiar.

Pensas em ser mãe para gerar a quem amar de tabela,

logo és barrado pela biologia que te fez homem, te fez varão, terás tu que lidar

com a dor do coração sem jorrares por fora, sem demonstrares um só lamento.
Serás tu seco por dentro e, ainda assim, terás que te levantar.

Com as pernas que tens, porás em movimento uma após outra, como
numa sinfonia de gente louca, pondo-te a  correr como um animal cheio de medo. 
Pensas com sabedoria, que nem mesmo o pior dos dias é capaz de parar

aquele que se pôs em movimento.
Ouves portanto, o velho poço a te chamar, carregando resquícios de tua alma

lamacenta que vai se esvaindo enquanto corres.
Teus passos são tão rápidos, teu mover tão tenaz que de repente

tornas a sentir os cheiros do mundo.
Teus cabelos, agora esvoaçantes, brincam com a relva em igual movimento.

Começas a sentir que por dentro teu peito cintila e o sangue, ávido

por circular as veias, acelera sua pulsação e aquele oco antes tão vazio
ouve rufar um coração. 

Entendeste por final, o mistério das coisas paradas a viver estagnadas,

cada qual com sua própria nominação.

Uns a chamam medo, outros solidão.

Eras tu somente uma alma dolorida que foi chamada à corrida e decidiu por ficar. 
Sabendo agora das rodas do mundo,

vibras nas ondas mais belas e te demoras somente em amar!  

 

A FOME

A fome arrasta uma carroça e passa vagarosa pela avenida movimentada
Seja paulista, sulista, carioca ou candanga.
Calçada em trapos, metade pé, metade sujeira.
Seu corpo é repuxado, esquelético.
As hastes metálicas chegam a se confundir com as mãos que carregam   
latas de coca-cola vazias, bebidas por quem não tem fome.
A fome tem poderes mágicos, 
quando bate nos corpos os tornam invisíveis.
Insensíveis são os olhos de quem não tem fome
Ao lado das lojas abertas, pessoas vazias de barriga cheia. 
Comentando o jornal local
Lamentando a violência banal
Enquanto comem…
A fome junta moedas pra comprar um pão,
mas pelo pouco que juntou recebe um: não!
E o frio traz fome. 
Mas pra quem já tem fome 
o frio traz medo.
Agora o  pão já não é o bastante e
o corpo quer ir além da nutrição
Saciar a solidão
Disfarçar a saudade 
Fantasiar que faz parte da sociedade
Deixar de ser invisível 
Permitir que qualquer coisa entre na veia
Fumaceie os pulmões. 
Depois de satisfeita 
a fome esquece a si própria.
Agora não está desacompanhada
É facilmente notada
Mobiliza o aparato policial
Dá pauta para a matéria do jornal.
Agora é ela quem alimenta o medo.
Na mesma avenida lotada
A fome tão cheia de si
Quer dividir o que tem
Quer ser notada
É violenta
É violentada 
E acaba por ser culpabilizada
pela própria fome que tem. 

 

A FLOR E A INFÂNCIA

 

Eu sei

Você fez birra por quase todos os cantos

Quebrou sua paz

Rangeu dentes alheios enquanto apertava os seus

Escondeu os gestos

Fez protesto contra tudo que vinculasse ela a você

Não aceitava ser chamada de flor

Coisa esta, infantil, banal 

Por um tempo foi eficaz

Enquanto tudo era caule e promessa de botão

Ainda assim ela forçava

Ensinando o que você queria desaprender

Sei bem…

Você queria ter apenas um 

Eu

Inteiramente seu

E por isso gritou tanto

Até que conseguiu

Deixou seu jardim

Partiu

De repente, era a mais bela entre as mulheres

Sem em nada parecer com o jardim que te gerou

Isso era o que pensava, você

Agora dona do seu eu 

Esbelta, elegante

Triunfante nas agendas sociais

Radiante? 

Sim, cada vez mais

Tão cheia de pétalas

Tão cheia

E tão cheia 

Que murchou…

Não sustentou o próprio peso

A alma carregada

O perfume inebriante a sufocou

A beleza desejada mandou cobrança

Desfez contigo as alianças

Você então 

Rogou

Pediu aos céus 

Os perfumes dos outros tempos

Em vão

O caule deixou sua face envergada

Nada mais era tão urgente

O vento se pronunciou

As pétalas se foram junto com ele

Aquela que fugiu de seu jardim

Voltou 

Lá se deparou com suas raízes

Entrelaçadas

Lá também estava ela

Sob calma chuva fina

Tímida, acanhada

Esperando paciente

A flor desgarrada

Recebeu você com um sorriso

Que te fez resplandecer

Se entender por dentro

Você abriu novamente um botão

Agora mais ameno

Mais discreto

Foi preciso multiplicar-se

Tamanha alegria que não se cabia numa só

E por você nasceram milhares

Estava ela a te esperar:

Sua infância descartada

Sua mais bela raiz

Seu mais lindo botão

Não era preciso mais lutar

Nem dela se avergonhar

Tudo o que fora bobo e infantil  

A flor agora precisava

A flor madura 

Experiente

Se fez contente 

Quando foi chamada de flor

Novamente 

 

INCONSCIÊNCIA HUMANA

 

Imagino que ao crescer vamos enfim aprender 

Agora que somos mais velhos

Esticados

E somente isso 

Falta algo a mais para crescer 

Tão grande somos e ainda balbuciamos que injustiças são puro:

Mi mi mi

Crescer para ouvir os ecos dos gritos 

Por detrás das selfs coloridas que tiramos 

Quando estamos no Pelourinho.

Lá se tinha consciência humana 

Seletiva e esbranquiçada

Talvez quando crescermos como nação

Não veremos as vidas como borrões de tinta apagada

E tampouco acreditaremos que histórias clamam por ser vitimizadas

Há 70 anos atrás pessoas se reuniam em centros populares da Europa

Indo para Paris, Londres, Bruxelas

Tal como fazemos agora para desestressar e ter uma bela experiência emocional

Naquela época colocavam negros em praça pública 

Dentro de um cercadinho para exibir uma experiência animal

Se perguntados, diriam por certo que tinham: Consciência humana e não racial

Se isso lhe soar racismo ao contrário ou falta de consciência tal 

Digo apenas que é um relato 

Você terá a opção de pesquisar no Google

Mas não aconselho a você

Aconselho algo a mais

Passe a vista nos jornais 

Ou fora da sua confortável residência mental 

Comece hoje mesmo

Ao estacionar

Passe o olho na cor do Flanelinha

E imediatamente olhe para a cor do condutor 

Do carrão ao lado

Ao ir para seu encontro com as amigas e amigos

No agradável local de sua escolha

Olhe mais uma vez:

A cor do atendente

A cor do freguês

A cor do limpo chão branco

Areado em sua maioria pela mão negra

Não quero estragar seu dia

Mas tenha a ousadia de verificar os números

Caso você seja racional e ame as estatísticas

Passe o olho de forma sutil

E vai ver que de 100 pessoas assassinadas 

73 são negras neste Brasil

Seriam muitas estatísticas para explanar

Mas meu intuito é que você vá pesquisar

E não pare de olhar.

Se for curioso vai descobrir:

A cor da prisão

A cor do Judiciário

A cor da periferia

Entendo se tudo isso lhe der dor de cabeça…

Você poderá dispor de um médico para lhe atender

Mas não poderá esticar muito a conversa sobre suas novas percepções raciais

Pois ele certamente será branco e falará que isso não é nada demais

Se você tem mesmo essa empatia te digo que pode se juntar

Pois tudo diz respeito ao Branco ao Amarelo, ao Negro.

Não se esqueça que se seu aniversário for no dia do 

Natal, finados, feriado nacional, ou dia da Paz Universal

Ainda assim você lutará por ele, pois ali está um pedaço da sua história

E você vai querer ser lembrado!

Entendo seu infantil desejo sobre essa tal consciência

Eu também o tenho.

Vejo que somos pura igualdade na biologia

Na capacidade, na humanidade e na falta dela

Só não na realidade social, na vitrine, na novela, na Universidade, no jornal…

Mas unidade é conquista e não pura palavra 

O momento é de falar 

De expor no verso, na rua, na cara nas leis

Há um negro no Brasil a despertar

Desejoso de se mostrar 

De falar com orgulho do seu dia 

De soltar os cabelos

As amarras 

Levantar a cabeça e manter a coluna ereta

E isso é puro encanto

Nos deixem reverenciar todos os lindos dias

Mas especialmente este 

Pois ali e quando se traz à tona a memória e a história 

E se convida a consciência para ser: 

Negra

  

O tempo

O tempo levou as ilusões
Transformou minha cidade
Mudou minha idade
Descoloriu-me os cabelos
Mudou minha opinião

O tempo fez estrelas caírem
Apagou minha memória
Levou alguns parentes
Gerou novas crianças
Desgastou amores perfeitos
Fez a seca no rio
Trouxe novas estações
Novos amigos
Matou nossa vaidade

O tempo fez piada com as certezas
Mudou tudo aquilo
Que em outro tempo se acreditava
Corroeu nossos segredos
Aumentou nossos medos
Escapou entre os dedos

O tempo me cedeu uma fração
Um de seus vários pedaços
Que tentei esticar
Que tentei conservar
Que tentei guardar
Que tentei rememorar

Ainda assim o tempo veio cobrar
O pouco tempo que me deu
E como o tempo nunca foi meu
Tive eu que aceitar
Ficar sem tempo e sem lugar

No nosso último adeus
Esperava ficar triste
Mas foi no final do meu tempo
Que percebi
Que o tempo sequer existe.

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Carlos Alberto Jr

Vapor

Era vapor
Que impulsionava a terra
que tremia as veias
Que rancava o couro
Era vapor
Corrida de touro
Eu e você
Nosso jeito sentimental
Vivendo a quentura do mundo Animal
Sentindo por dentro
A ebulição do momento
Os pés na serra
Queimando os caminhos
Derretendo as bocas
Era vapor enquanto
habitava o corpo
Se tornou chuva
Pra outra planta crescer
De onde viemos
O que viemos a ser
Veio desse caos ardente
Estanho adimitir para mentes inocentes
Que toda a vida teve inicio em uma bola incandecente
Um inferno particular
Um forno sem limites
Os eons do tempo
Viram o solo arder
Mergulhar
Envelhecer
Recentemente vieram os animais
Guardando traços ancestrais
De um calor
Que já não existe mais.

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Carlos Alberto Jr