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A fama da vida após a morte

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Buscado por ancestrais de ancestrais, o futuro do último suspiro abala a imaginação dos seres que na terra vivem dotados de consciência. Deter-se na rememoração ou mesmo na listagem das epopeias humanas que versaram sobre o tema do futuro pósmorte seria, no mínimo, um ensaio rumo à morosidade. 

Contudo, finalmente, ansiosamente, após milênios de ideações e confabulações, enfim, conseguimos saber, graças à modernidade, o verdadeiro destinotrajeto humano após a morte. 

Acompanhamos de perto os sofrimentos gerados pela descoberta e o quão estarrecida a humanidade pôsse diante do fato. Pobres humanos, duro golpe nos foi dado. Saber que a eternidade ou ao menos a longevidade continuada atrela-se de modo cruel à fama. Por faltar ao mensageiro que vos escreve a linguagem técnica e correta do acontecido ater-me-ei de forma leiga e direta a descrever o fato tão qual fui informado. Acrescento no relato a rudeza que me é habitual, caso queiram florear os fatos, não recorram, pois, a minha humilde fonte. 

Como a explanação do modo como aprendi as coisas mais complexas da vida: com exemplos de João e Maria. Pois bem: se Maria ama João e guarda o amor e João na meria, João passa a ter um contrato com Maria. Complicado, não é? o, não o é! 

Passarei logo à morte, sem delongas para explicar de uma vez por todas tudo isso. Maria que ama João e o conserva no coração e na memória alegrase naturalmente ao saber que João, tendo mal súbito, morre sem fineza no chão duro da oficina em que trabalha. Leitores de um passado distante e o tecnogico, espantados ficarão com a insensibilidade de Maria, uma vez que, não é louvável tomarse de alegria ante a morte de quem se ama. Porém, Maria pertence a este tempo presente, e aliás, é uma grande amiga minha muito querida. Sabe bem ela que João, após a morte, tornouse algo imaterial assim como algumas religes já diziam, no entanto, João somente existirá se a sua presença for constante dentro da memória de alguém! Entenderam? Caso não, sem preocupações, é só o como da explanação. Relato apenas que nosso amigo João não era homem de muitos amigos, pelo contrário, passou despercebido pela vida, recatouse e reservouse ao máximo. No fundo sabia que o que fazia em vida o levava rumo a um suicídio sem volta após a morte. Se só Maria o amava e o guardava na lembrança e a continuidade de sua existência após a morte era única e exclusivamente condicionada à lembrança das pessoas vivas, o que faria ele quando Maria morresse? Morreria duas vezes! 

Quando João morreu tratou de pedir a Maria (através de comunicões vivos- mortos, pertencentes a este espaço temporal) que ela espalhasse para o maior número de pessoas informações sobre sua ilustre vida terrena, a fim de que mais pessoas o conservassem na meria, aumentando assim, seu tempo desobre morte. 

Maria, bobinha e apaixonada que era, tratou logo de acatar o pedido de seu morto amor e empregou todas suas economias a serviço da divulgão da vida do marido. A princípio julgava ela ser este um trabalho fácil devido à comunicação virtual que nos é disponível atualmente. Pensava ela: “Quando estiverem se esquecendo de meu marido colocarei nas redes sociais algo admivel e surpreendente sobre a vida dele” Pobre mocinha! Descobriu cedo que o marido não era homem admivel, tampouco surpreendente. Constatou com a mesma rapidez que sua imaginação não era fértil o suficiente para inventar uma vida para o marido, e mentir não era algo que combinava com quem se chamava Maria, já dizia sua mãe. 

Mas João era meu amor, bradou Maria! O que fazer? Contrate uma agência, disse o mundo a Maria! O mundo disse a Maria… Confesso que é um exagero meu. Quem disse isso a ela foi o pai, o irmão, a mãe, eu e uma amiga dela. Maria era passadinha demais e não se ligava muito nos panfletos que lhe davam na rua anunciando os serviços das agências formadoras de lembranças. A bobinha contratou logo com a primeira agência que trazia no nome o desejo dela: Lembranças eternas, amor eterno – Agência de serviços”. 

Sentaramna em cadeira duplamente acolchoada, recolheram seus dados e puseram em seus s relaxantes cremes dissipadores de tensão, enquanto uma voz calma era entoada pelo vendedor do pacote de serviços: Seja bem vinda caríssima Maria, eu me lembro de você! Sua figura não é estranha e está certamente em minha meria, em que posso ajudála? Maria explicou sobre a morte do marido e disse que para não perdê-lo para sempre queria que ele fosse lembrado por mais pessoas além dela. O vendedor mostrando sua face desalmada logo perguntou: E por que seu marido precisa ser lembrado?

  Porque eu o amo e não quero que ele remorra. 

   Cara Maria, apaixone-se de novo! Case-se com um homem bem relacionado. Já tenho a ficha do seu João e recomendo que o gaste sua vida para arranjar lembranças para um marido que não se fez presente em terra. Várias pessoas como você me procuram e 

  Como eu? O que o senhor quer dizer? 

Serei direto, pobre! Pessoa pobre como você gastará a vida para prolongar a vida do companheiro que se foi e quando você morrer deixarão os dois de existir. Você e o seu querido João, pois quem se lembrará de vos? Quem os manterá mortos? Ninguém, cara Maria. Meus clientes são famosos, em sua grande maioria atores de TV, grandes da musica, estrelas diversas. Quando morrem temos somente que perpetuar o trabalho de mantê-los nas lembranças das pessoas. Escrevemos dezenas de livros pós- morte, estrelamos filmes, buscamos filhos de casos extraconjugais e levamos ao conhecimento do grande público. Essas pessoas, Maria, são dignas de serem lembradas, além do que, pagaramnos para isso durante quase toda a vida. E vo… O que tem a oferecer pela mísera existência do seu João? 

-Tenho amor e uma quantia de dinheiro, se não for suficiente procurarei outra agência. 

-Tudo bem Maria, sua ingenuidade não me comoveu, mas, como temos o monopólio de praticamente todas as agências desta cidade e você o conseguirá muita coisa com este dinheiro, mandarei nosso escritor redigir um pequeno romance sobre a história de seu marido. o garanto nada e se alguém ler tampouco saberemos se o leitor guardará seu marido na lembrança. 

-Você não pode passá-lo na televisão? Tenho alguns vídeos dele e 

-De jeito nenhum Maria, a TV não é lugar para João sem talento. Pelo visto vonão percebeu a dimensão glamorosa de nossa clientela. Além dos astros que já mencionei, temos pessoas que pagam bastante para a existência pósmorte. Os admiradores eternos dos ícones ocidentais acreditavam que era preciso pagar fortunas para manter seus ídolos sempre na ativa, neste sentido, a lista de seres mantidos pelas lembranças dos vivos é enorme, temos celebridades que vão de Karl Marx a Margareth Thatcher. Muitos dos meus clientes, aliás, em entrevistas pósmorte disseram que gostariam de deixar a existência, pom alguns não acatam seus ensejos para os tirarem da cabeça. Enfim, existe muito dinheiro envolvido e o seu querido João precisaria de fama, nem que pouca, para existir e pelo visto não o fez. 

Maria agradeceu, educada que era e, respirando bem levemente, pensou consigo mesma: se fosse para viver daquele modo ela não queria mesmo. Nem todos nasceriam para a fama, nem todos mesmo a queriam. Tornara-se imperativa e subjugante a tal fama a qualquer custo. E quanto ao funcionário da agência, estava certa que pouco a pouco se esqueceria dele. Maria estava decidida, iria morrer como João, recatada, sem fama, não agradava ser conservada na lembrança a troco de uma existência pósmorte caso não o quisessem. Conservaria o João, Joãozinho como ela chamava, e viveria com ele o tempo em que seus familiares e amigos os conservassem na lembrança e depois partiria! 

Partiria? 

Espere um pouco… Mesmo Maria, a bobinha, suscitou uma grande questão e assim como eu inquietouse com a pergunta crucial. E quando não estivermos mais nas lembranças de ninguém? Para onde vamos? 

 

Será que existe vida após a segunda morte?

 

 

Carlos SJ

Escritor, Psicólogo, Músico

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