É belo, no entanto, pode ser sutilmente embaraçoso lidar com perguntas infantis e se torna ainda mais árdua a tarefa se a criança ávida por respostas não for seu filho ou nem mesmo estiver com outros pequenos ao lado. Sentada à mesa eu estava numa entediante festa infantil quando os adultos se retiraram por um instante, cada qual movido por razões diversas: uma levantou para fumar, outra se foi a telefonar ao marido, o outro levantou sem justificativa e perdeu-se entre os balões decorativos. Nem mesmo para disfarçar tinha eu algo a fazer além de ficar encaixada na cadeira branca alugada da festa infantil. Sendo assim, por lá fiquei. Passados alguns minutinhos começo a olhar para o lado e certificar-me de que não precisava fazer algo como ir ao banheiro, comer, beber ou cumprimentar algum recém-chegado da festa e tive de deter-me ao perceber os objetos das pessoas que comigo estavam, em cima da mesa. De acordo com a regra da boa convivência fui sentenciada a ser o guarda-volumes da vez, é uma regra implícita e por certo, tal fato já deve ter ocorrido com muita gente: quem sozinho na mesa está os objetos de todos deve cuidar. Sem distração eletrônica em mãos tive que observar as mesas longínquas, foi quando o olhar de uma pequena criança, a deriva de seus amiguinhos, vidrou-se nos meus olhos. Ela veio andando com bracinhos desconjuntados, desengonçados e sem ainda tirar os olhos dos meus, perguntou:
– Tia tem refrigerante? E tia… Qual seu nome?
– Cecília.
Dei o refrigerante de imediato e enquanto ele bebia pôde ver o aniversariante ganhando mais um presente e afirmou logo em seguida que, também ele, havia ganhado um presente, mostrou então a decoração de mesa no qual havia outras iguais ao redor. Sem querer frustrar a criança alertando-a de que aquilo não era presente e sim uma tosca lembrança da festa, disse a ele que era muito bonito e que fosse mostrar o tal presente aos seus amiguinhos… Mas o menino não ia! E ninguém na mesa chegava e tenho que deixar claro que naquela noite meu espírito não estava para adulação de crianças. O garotinho continuava a falar e no meio do prolixo falatório contou que o presente (enfeite de mesa) que ele ganhara era um poema. Confirmei que realmente tratava-se de um poema e já pressenti a pergunta, que veio logo em seguida:
– Tia, o que é um poema?
Respondi que eram palavras que nos faziam ficar quando queremos partir.
– Como assim?
Nossa… Logo percebi a asneira que acabava de dizer a um garoto de cinco ou seis anos. Fazia um bom tempo que não falava com crianças e foi só ele fazer uma pergunta adulta que automaticamente o tratei como tal. Ao menos eu estava aliviada, uma vez dada esta resposta qualquer adulto me daria por chata e cortaria a conversa, quanto mais uma criança. Ela disse, porém: o que me faz ficar quando quero ir embora não é poema. Eu fico quando estou alegre e daí não quero mais ir embora e não quero mais este presente, mas quero que você fique aqui comigo. Eu não quero brincar com os outros porque eles dizem que eu falo muito, mas na verdade eu nem falo tanto.
– E onde estão seus pais, por que não fica com eles?
– Minha tia me trouxe e não sei para onde ela foi, fica aqui comigo? Quero brincar com você.
– Garoto, não posso cuidar de você, não estou alegre o suficiente para brincar com crianças hoje, também estou de saída. Fique aqui na mesa, cuide dos pertences dos outros tios e espere sentado até a sua tia lhe achar, caso ela esteja te procurando, tudo bem?
– Quem foge de uma criança foge da sua própria alegria, tia Cecília.
– O que? Você leu isso nesse poema? Já sabe ler? Quem te disse isso?
– Não sei, vou embora e nem precisa mais brincar comigo.
Aquelas palavras e olhar desconsolado do garoto me aterrorizaram e ainda hesitei em chamar aquele corpinho infantil que me dava às costas e saia de minha mesa, sequer consegui mover os lábios e tudo que se movia eram as pernas, apressadamente, entendendo a necessidade de não prolongar a vergonha que me inundava no momento. Saí esbarrando em convidados desejando o mais rápido alcance da porta e ignorei todo tipo de exclamação com os que percebiam minha tempestuosa saída.
Um ar fresco entrou, se anunciou e balançou meus cabelos assim que pude sair do prédio. Agora tudo estaria bem, pensei! Passados segundos percebi que era uma mera impressão termostática. Nenhuma brisa seria suficiente para eu poder sair ilesa daquela situação e, assim que fechei a porta do carro, a ignição da culpa acionou-se antes mesmo da real partida de meu veículo. Agir rispidamente com crianças não era nenhuma novidade para ninguém nesse mundo e eu mesma havia sido criada em meio às oscilações do amor e da repressão. Os olhos cheios de brilho, a estatura pequenina, as palavrinhas embaralhadas e o imenso esforço em alegrar um adulto que nunca tinha visto. Foram essas as provas de minha condenação: não devia ter feito aquilo ao garotinho. Mas entre tantos adultos presentes na festa, tinha a criança que mirar sua alegria justamente nesse poço de mau humor?
A noite ainda seria longa e no trajeto até em casa pude pensar que a “ranzinzisse” não era o único mal do qual eu padecia, entreguei, aos poucos, os pedaços da alma para satisfazer demandas sociais duvidosas, fui perecendo e já nem me lembrava de gostar de algo genuinamente meu. Era ansiosa por não ser, ansiosa por não ter, temerosa com o que tinha, receosa pelas companhias a me cercar e há tempos resumira a vida em um álbum de fotos virtuais, em que nem sofisticadas maquiagens escondiam o olhar de tristeza. A ternura me era uma veia grossa e pulsante, mas no mesmo coração, agora dominava a raiva de uma vida frustrada, no final, quem se importa? Na verdade somos tantos e tantos de nós fomos o mesmo garotinho a se alegrar com tudo e depois caímos em miséria afetiva. Tanto somos nós, que formamos uma colônia, uma província, uma torcida organizada, entoando cânticos, exaltando o fracasso de não ter mais um fio de criança dentro de si. Confesso que já estava acostumada com isso, mesmo em meus ínfimos trinta e dois anos. Dava prazer, às avessas, reunir com as amigas ou mesmo os colegas de trabalho para dividir as frustrações do mundo adulto e extrair felicidade ao saber que coisas piores aconteciam aos outros. Todo mal estava indo muito bem até o encontro com o garotinho da festa…
Posso resumir os meus pensamentos em culpa, é ela que estou descrevendo e ela nos leva frequentemente a fantasias extremas, como um monstrinho que se alimenta de lixo, mais e mais sem cessar. A minha culpa é do tipo conta-gotas: lenta, serena e interminável. Assim sendo, em uma dessas gotas de culpa, pensei ter feito ao garotinho exatamente o que um general chinês faria a um Dalai Lama, independente da serenidade do monge. São naturezas tão diferentes e paradoxalmente compostas com o mesmo material humano. Tudo bem claro! Minha atual vida estava desacostumada à amabilidade e perdi a ideia do que era ser doce. Pensando desta maneira foi fácil perceber o porquê da incapacidade de me comunicar com um ser formado por carne, osso e alegria. Conviver com gente alegre, terna e bonita era impossível, não havia alegria em mim e seria como se eu e você, que agora me lê, sentássemos para conversar e você falasse sobre suas dívidas e eu respondesse à suas angustias falando sobre tintas para cabelo. Divaguei em pensamentos, torturei-me durante boa parte da noite e só pude bocejar quando percebi que tudo aquilo que pensei com muitas delongas fora resumido e explicado com a simples frase dita: “Quem foge de uma criança, foge da própria alegria”… Bom, já deu pra perceber que sou daquelas que demoram muito para entender o óbvio.
Acordei sem pensar, levantando para os rituais de escovas nos dentes e cabelos. Ao enfrentar o espelho para a escolha do brinco ideal tomei um leve susto! Não consigo descrever exatamente o que aconteceu, o rosto estava encolhido, parecendo despertar de um sono ancestral, aos poucos minha face foi modulando uma impressão de encanto e os dentes amarelos, não exibidos nem mesmo na intimidade de meu banheiro, se abriram terminando de aninhar todos os pontos de meu rosto. Sorri desvairadamente sem que nenhum pensamento precedesse o sorrir, sem nenhuma lembrança engraçada para ajudar, nada que fizesse aquela boca abrir e os lábios se esticarem acompanhando-a. Coisa estranha… Escolhendo a roupa para ir ao trabalho tive a sensação dela me ter escolhido e, novamente lá se foram os dentes se exibindo, quando me vi vestida. A calça jeans lá do fundo do armário, geralmente fixada na sessão “roupas para doar”, a blusa totalmente colorida, cavada, visando evitar desconforto do calor e um incrível e fora de contexto para o mesmo calor: cachecol. Estávamos num verão de sóis particulares, ardente, o ambiente úmido, e, assim mesmo, lá estava o adorno enroscado em meu pescoço. Isso um dia já soou ridículo e qualquer lampejo de pensamento faria alerta sobre a gravidade de sair na rua vestida como uma londrina no inverno, em pleno verão carioca, mas só uma pergunta pairava: quantas voltas se deve dar em um cachecol? Eram muitos anos sem usar e somente esse era o problema. Na hora do café habitual senti um cheiro acentuado enquanto mergulhava a colher no pó e outros cheiros acompanhavam este, como o da cortina que se fez sentir em odor, anunciando a hora de lavar. Eu bem sabia a hora de lavar cortinas, nunca porém, fui alertada a fazê-lo devido a sinais olfativos.
O dia certamente iria seguir sem surpresas, costumeiramente como sempre fora, e eu já tinha todo o roteiro a cumprir, ainda na parada teria de acenar positivamente com a cabeça para o Afonso, vendedor de milho verde, observaria as pessoas na mesma parada, fitando-as até perceber alguém a fazer um incivilizado gesto ou uma pequena transgressão como, jogar lixo na rua ou ser indelicado com um idoso. Depois de conseguir flagrar esse ato pensaria comigo mesma como sou uma boa mulher e o quão acima disto estou na escala social e isso me daria um tema para pensar até à chegada do esperado ônibus. Já dentro do transporte sentaria quieta, abrindo um livro, com um fone pendurado ao ouvido e, se pudesse, para deixar ainda mais claro minha atitude antissocial, penduraria uma placa junto ao pescoço dizendo, “não perturbe, mulher se isolando” em pelo menos três línguas além da nossa, para precaver o contato com os eventuais turistas a lotar o Rio nesta época. Pela janela, buscando mais coisas a observar e posteriormente reclamar, passaria a vista na miséria em contraste com o último padrão da arquitetura moderna, ambos lado a lado, e isso me daria mais alguns minutos de reflexão, enquanto vão morrendo os quinze quilômetros a separar-me do trabalho. O dia mal começara, e a cabeça já estaria inchada, a fumaça dos carros, das frituras, da avenida, tudo isso a irritar e a compor um cheiro único dentro da condução. Lembro de repente que aquela é uma parte boa de meu dia, estou transitando por entre pessoas, cercando-me de paisagens em que já estive inúmeras vezes, os 15 quilômetros são eternos e ainda mais agravados pelo fato de que não quero chegar ao trabalho, esse sim é um tormento a parte. Próximo à Avenida Passos, começo a devagar em recordações, todos os dias, e sei que hoje será mais um deles, de tanto rememorar os mesmos fatos de minha história parece que sempre estou de hora marcada com eles, os chamo de cadeados sem fechar. Na Presidente Vargas lembro que minha mãe trabalhou como empregada doméstica durante muitos anos em um daqueles prédios, porém impossível lembrar qual, já que enquanto ela trabalhava eu corria desvairadamente pelos andares do edifício, criando brincadeiras e fugindo dos disciplinadores do prédio. Foram bons tempos que agora são uma atormentada lembrança boa, feita para passar 300 metros congestionados dos quilômetros que ainda tenho pela frente. Seguindo pela rua, olho para a esquina em que conheci um grande amor, este é o momento alfa da viagem. Ele ainda mora lá, em minha cabeça sei que ainda mora, espero que saia, cruze olhares comigo no momento em que sair do prédio, sento sempre ao lado direito no ônibus para facilitar ser vista. Segundos antes de chegar perto da rua, retoco o cabelo, levo a mão ao espelho da bolsa e dou um sorriso para que ele veja o quão radiante ainda estou. Antes que a realidade sobrevenha, neste devaneio na Presidente Vargas, lembro abalada que fui eu quem o deixou, poupando o coração sobrecarregado de ainda mais desconsolo. Cortei uma relação, fria, egoísta, agressiva e distante e quando por ali passava tinha apenas vontade de que ele me visse radiante, prosseguindo cotidianamente sem ele. Não era amor, não era vingança, aliás, tantas coisas eram… Difícil era nominar. Esse retorno cotidiano ao passado passava todo o tempo até me deixar, sempre atrasada, na porta do trabalho. Descia inquieta recebida por Tatiane que a todos recepcionava na entrada do banco. Sentava na mesa apertada ao lado das amigas de profissão. Quando se está em um ambiente de trabalho há muito anos, infelizmente você conhece as pessoas, tal qual fossem elas um parente próximo ou mesmo um cachorro de estimação; seus gestos são conhecidos, os comportamentos dirigidos a você são esperados e antes que qualquer pessoa lhe dê um simples bom dia, já está estampado que ao olhar ela está dizendo na verdade: chegou outra vez atrasada? O que será que Cecília tem hoje? Talvez eu quisesse responder estas perguntas caso me fossem mesmo perguntadas, mas o que ouço é mesmo apenas um “bom dia!”
Entrei com 25 anos no banco em que trabalho hoje, alegria na família, nos vizinhos, no namorado da época e muitas pretensões com meu novo e promissor emprego. A cartilha foi toda executada, primeiro deveria agradecer pela chance que a vida me estava concedendo devido principalmente às origens simples do qual advenho. Agradecia, então, quase todos os dias. Depois tive que acostumar com os muitos problemas que o emprego gerou e como estava agradecida por demais, tive de arcar silenciosamente com a perda de minha juventude em números: 12 horas por dia, somados o tempo de trabalho e condução.
Metas, cotas, alvos, cortes, demissões e competitividade entre os amigos que tinha, foram azedando a jovem, já na casa dos 28 anos. Os amigos eram os mesmos do trabalho, pois não se tinha tempo de fazer outros fora dali. Meu humor oscilava de acordo com o perfil do chefe a liderar nossa equipe, se fosse dos bonzinhos, eu respirava, se fosse do time dos demônios eu me doía inteira. Havia um cheiro estranho naquele ambiente, muito complicado de se descrever, e apenas ao sair do local podia perceber o cheiro que ele tinha. Antes, em cada baía que eu passava levando documentos e mais documentos para assinar, tirava uns minutinhos para uma conversa casual, comparando a vida do colega a minha, sabendo de seus sonhos, sua família, sua possível cirurgia dentária, ou a chegada de um parente na casa dele ou dela. Os novos funcionários eram abertos a este diálogo, mas eu já estava condicionada a ser como os antigos e conformei meus limites aos limites da circunferência de minha mesa. Já não falávamos mais, já não respondíamos muita coisa além do necessário, íamos levando, levando sem ir a nenhum lugar, no fundo querendo trazer os novos funcionários para junto do marasmo emocional que tomava conta do lugar. No fim da tarde, exausta, do mesmo modo como cheguei, resguardando a sútil diferença dos olhos um pouco mais avermelhados, iria eu para casa, refazendo o trajeto de volta, encostada nos corpos dentro do metrô, de pê, sem tempo nem conforto para pensar no passado, presente, futuro ou qualquer coisa além da meta: chegar em casa!
O tempo passou um pouco até lembrar tudo isso e perder o ônibus, nem sequer cheguei a vê-lo, aliás. Perdi o transporte, não por atraso, mas por ficar qual estátua parada ao lado de Afonso, o vendedor de milho. Atravessei a rua já com a consciência de que deveria pegar um metrô e andar bastante para chegar ao trabalho, isso seria melhor do que esperar um novo ônibus e atrasar-me em dobro, mas tudo bem, parecia mesmo que aquele dia estava invertido, diferente, colorido. Já no metrô, tive a sorte de sentar de imediato no lugar de uma adolescente que saiu assim que cheguei e ela ainda sorriu pra mim ao levantar-se. Eu já estava sorridente apenas ao ver sentada aquela mocinha cheia de adornos próprios de sua idade, não tive nenhum esforço de sorrir de volta e, já sentada, sorri muito mais, estranhando o fato dela não ter descido, e ficar olhando o cachecol sem contexto e mau posto no meu pescoço. Parece que estávamos conversando sem nada dizer, ela rindo junto às amigas e eu rindo das risadas e da alegria por mim provocada nas adolescentes. Nesta hora o sol bateu com força na janela e junto com ele senti um agradável perfume da senhora que entrava após duas estações e se punha perto de mim. Levantei cedendo o lugar, ela agradeceu com mais um sorriso e eu poderia sorrir de volta, quase do mesmo modo como fizera com a adolescente, no entanto, desta vez sorri porque não me incomodei com os homens que estavam sentados no lugar dos idosos e isso foi estranho. Se ontem mesmo fosse, eu levantaria repleta de educação moral e raiva dirigida aos que não foram capazes de fazer o mesmo, sei lá… Apenas levantei e, não que concordasse com aquilo, mas apenas levantei e senti uma leveza a mais por isso. Tenho que dizer, também, que estando levantada, senti um cheiro puro quando a porta do metrô se abriu em uma plataforma no nível da rua, mesmo em meio à fumaça de escapamentos percebi que o cheiro vinha de um parque bem ao fundo e segundos depois estava eu fora do vagão descendo as escadas e indo em direção ao parque avistado. No meio dos degraus fiquei aturdida com a atitude tomada e pensei em subir na plataforma e embarcar novamente, mas o cheiro me chamava, leve e agradável. Parei sentada numa sombra, observei algumas pessoas passando e nada pensei sobre elas, o dever da chegada ao trabalho inacreditavelmente perdeu seu valor. Fiquei respirando o ar que provinha das árvores próximas à sombra em que eu estava sentada e isso era o que me ocupava, aos poucos me despi do cachecol e deixei os pés livres para caminhar, senti pedras pontiagudas, areia fina, terra batida, asfalto e comecei a sorrir. Na altura do parque, um pouco mais à direita, existia uma entrada de rua, fui caminhando por ela pensando sem pensar até parar em frente ao apartamento de Caio, meu antigo namorado e passatempo imaginário do entediante ônibus diário do trabalho. Interfonei no número que tentei esquecer, mas justo por conta disso mantive vivo na memória e uma voz disse que ele estava na padaria em frente tomando seu café da manhã. Cheguei rápido à padaria, sentei ao seu lado e sorri novamente ao ver sua cara de terror ao me ver. Trocamos olhares, palavras de bom dia e quando ele se apressou em dizer como aquele encontro era uma coincidência, sem rodeios eu disse que não! – Apertei seu interfone, fui informada que estava aqui e vim para vê-lo, não há coincidência alguma! Conversamos sobre tudo o que era trivial. Dentro daquele ônibus passei anos engendrando um discurso monumental para caso a vida me desse oportunidade de um encontro. Caio não estava diferente, vê-lo foi estranho, parecia uma imagem congelada no tempo e não senti vontade alguma de rememorar grandes histórias que passei a seu lado, nem mesmo despejar lamurias, pois naquele momento eu já não as tinha. Ele parecia ser o mesmo e éramos duas pessoas estranhas que tinham dado as mãos em algum momento remoto. Despedi de Caio e segui andando devagar, pensando alto, falando baixo, cruzei a rua, onde se aglomeravam vendedores de pastel e inúmeras outras frituras suculentas. O ponto de ônibus onde minha alma machucada inquietava ao ver a rua de Caio perdeu o posto para a barraca de pasteis na esquina e enchi os pulmões com os variados cheiros que antes me nauseavam no ônibus e agora me transportavam para uma infinita sensação de possibilidades. Entrei no ônibus ainda com um pastel na mão e cheguei bem rápido à porta do trabalho devido ao horário tardio e trânsito calmo. Inacreditavelmente, deram-me bom dia e mais nada, mesmo decorridas muitas horas de atraso. Respondi de imediato, estou atrasada e cai na gargalhada. Os antigos funcionários se assustaram por eu denunciar o óbvio e quebrar nosso silencioso contrato de mentira e tristeza, então sorriram também e nem mesmo posso me lembrar de quando um sorriso sincero contagiava toda minha equipe. Meu chefe já estava posicionado atrás de mim expectando a cena e, embutido de sua autoridade ferrenha, disparou em meio a todos os sorrisos: não vejo graça em se descumprir um horário com tamanha irresponsabilidade! Sem tom algum de desafio somente respondi que ele não veria graça mesmo, pois aquilo não era pra ele, seu papel ali era não achar graça alguma e ainda punir a dos outros, e isso não era sério, era na verdade bem engraçado. Fui dispensada e ouvi que deveria sair para “tomar um ar e voltar no dia seguinte”. Se ouvisse de alguém que o ato de tomar um ar antes de ir ao trabalho faria com que eu fosse dispensada para tomar outro ar, confesso que não acreditaria. Amei ser dispensada, agora talvez eu tivesse evoluído da categoria responsável triste no trabalho, para a categoria louca irresponsável, essa última ao menos continha o direito a um ar e a uma dispensa mais cedo.
Voltei pra casa, andando e no trajeto tantas coisas a pensar… Estava me sentindo como uma árvore nascida para produzir um só tipo de fruto e de repente estava eu estranha, dando laranjas, limões, peras e framboesas na mesma árvore. Seriam 15 quilômetros de trajeto e o que antes era desgastante mesmo dentro do transporte público, tornava-se uma necessária e reconfortante caminhada. Passei por lugares onde via e sentia apenas o reflexo do que trazia dentro de mim e agora era lindo olhar-me no espelho e o espelho eram as pessoas, todas elas: especialmente as crianças ao qual não perdi a oportunidade, em nenhum momento do trajeto, de retribuir o sorriso que me era dado e foi fascinante perceber quantos sorrisos me eram dados. O cheiro de meu perfume se tornava evidente, assim como um cheiro que me era natural e talvez nunca tivesse sido captado. Impossível de descrever, maravilhoso sentir. Parei com leveza já perto de casa olhando para cima, pois lá algum artista fazia um memorável quadro e pedia para as cabeças baixas e apressadas um segundo de contemplação, então apenas sentei, percebendo ao menos sete tons de azul, bordados uns aos outros, azul com branco, com cinza, com rosa, com amor. Modificando-se ao toque dos raios de sol que também se disfarçavam em laranja, rosa, vermelho e dourado. Nuvens por detrás das palmeiras eram tão lindas que dava vontade de sê-las. Uma paz tão terna que se desmanchava ao sopro dos ventos, o corpo foi sentindo amor por todos os cantos, mesmo que também sentisse vergonha por estar agora de pé olhando para cima, em meio a tantas pessoas. Em outros tempos chamaria aquilo tudo de “final de tarde”, mas no momento não cabiam nomes.
A noite chegou, eu estava em frente a minha casa e antes de entrar cumprimentei o senhor da casa ao lado, meu vizinho, e acrescentei que o seu cheiro estava bastante agradável. Ele me agradeceu e perguntou em seguida: e você Cecília, qual o seu cheiro? Sorri com lágrimas nos olhos e entrei respondendo baixinho…
– Eu tenho o aroma de uma flor, quem diria… Estou bela, alegre, bonita e pude enfim sentir o mais forte e sensível cheiro: o cheiro da alegria.